Pe. José Artulino Besen
“No princípio, Deus criou o céu e a terra” (Gn 1,1-25).
A ciência tem a missão de procurar penetrar, cada vez com mais profundidade, os segredos da vida, da matéria, do universo. Quis Deus que o homem “dominasse a terra” (Gn 1,28). Mas, a ciência parece sentir-se atraída pela hipótese de negar o Criador, atribuindo tudo ao simples acaso, a uma explosão inicial que teria dado origem aos universos e depois a todas as formas de vida. Tudo bem: aceitemos a hipótese de uma explosão inicial, pois o Big Bang (grande explosão) não complica nossa fé. Ficam duas perguntas: – o que explodiu para que tudo tivesse início? – quem fez o que explodiu, se do nada nada se produz?
Permanece nos cientistas o desafio de explicar criação sem Criador. A cada grande descoberta sobre a origem do mundo surge uma nova descoberta completando a anterior. A ciência vai caminhando de hipótese em hipótese, para acabar sempre com a mesma pergunta: – E como tudo começou?
Conta uma história que o homem construiu o computador do tempo. Poderosíssimo, teria a capacidade de caminhar para trás, vencendo as etapas da história, penetrando sempre mais no passado. A cada comando, milhões de anos eram vencidos. Chegou o início da vida humana, da vida animal, vegetal, à origem dos minerais, dos corpos materiais, dos tecidos celulares, das células, estava atingindo as origens das moléculas.
Os cientistas estavam cada vez mais satisfeitos: mais alguns passos, e se chegaria ao início. Tudo estaria explicado. O computador vence as moléculas, chega aos átomos. Faz-se um novo programa e o átomo é um novo mundo a ser penetrado. Diminuto, mas tão complicado como o mais complicado dos mundos: nele há um novo universo – prótons, elétrons, nêutrons, mésons, fótons, etc. Está chegando à última partícula do universo. Felicidade geral. Vencendo essa etapa, tudo estará explicado e todos os teólogos e religiosos estariam relegados ao museu da história, inúteis para o mundo governado pela ciência. O computador foi penetrando cada partícula do átomo, tudo parecia indicar que, finalmente, se chegaria à origem do universo. Mas, para a decepção dos cientistas, a máquina teve um superaquecimento e, no visor, lê-se um pedido de socorro, sem o qual o computador não poderia ir adiante: “Faça-se a luz!“. E a máquina se desintegrou. “Faça-se a luz” (Gn 1, 3a) é a primeira palavra de Deus na história do tempo e do espaço. Essa luz somente pode ser alcançada com o auxílio de quem a criou.
Crer que tudo é obra do acaso seria o mesmo que afirmar que um dicionário é o resultado de uma explosão numa tipografia (B. Franklin).
Assim como é próprio da ciência não ter respostas definitivas, também é da fé se completar e enriquecer com os dados científicos. “Ciência e religião não estão em conflito, mas precisam uma da outra para completar-se na mente de um homem que pensa seriamente”, afirmou ninguém menos do que Max Planck, o pai da teoria quântica. Ciência e fé não são incompatíveis: o que mais se percebe é o abuso de poder de uma sobre a outra. A ciência se dedica aos “fenômenos”, enquanto que a teologia e a filosofia se dirigem ao “fundamento” dos fenômenos, escreve o Cardeal Ravasi, do Pontifício Conselho para a Cultura e promotor do diálogo entre ciência e fé, e entre crentes e não-crentes.
A criação, participação de Deus
“No princípio, Deus criou o céu e a terra” (Gn 1,1-25). É a primeira afirmação da Bíblia e princípio essencial da fé: admitimos que Deus existe, além dele nada existia e por ele o mundo passou a existir. Sendo isso claro, nossa fé é clara. É o início da fé bíblica: Deus é o Criador.
A terra era informe e vazia e no “faça-se a luz” a ordem se impôs e teve início a evolução do universo, os sete dias da criação. A ciência trabalha com a hipótese de que o primeiro dia foi há 13 bilhões de anos. Definitivo ou provisório, esse cálculo possui grande importância: houve um primeiro dia, o mundo não é eterno.
Aqui surge a primeira objeção: se Deus é onipresente, ocupa todos os espaços, como haveria lugar para a criação? A criação seria emanação de Deus, isto é, identifica-se com o divino, como afirmam os panteístas? Para eles, tudo é Deus e Deus é tudo, enquanto que nós dizemos que tudo é de Deus e Deus é senhor de tudo.
Como fomos acostumados a refletir sobre Deus a partir da filosofia, da metafísica, temos dificuldade de pensar Deus e a criação com os critérios da revelação bíblica, da história da Salvação. Nela, Deus se revela como “aquele que se diminui”, aquele que se contrai, se autolimita.
Antes da criação, Deus ocupava todo o Universo, de modo que não haveria lugar para as criaturas. No seu amor, Deus se diminuiu, se contraiu para dar lugar à criação. Ele, perfeito, despiu-se de parte de seu poder e criou o espaço para sua obra. Simone Weil (1909-1943), encantadora filósofa e teóloga francesa, que percorreu os caminhos do judaísmo, ateísmo e chegou ao catolicismo (religião dos pobres e ignorantes, por isso verdadeira!, em seu dizer) afirma em sua obra A sombra e a Graça: “Deus, junto com todas as suas criaturas, é menos que que Deus sozinho”. Então, por que criou o mundo? Por amor e com amor. Loucura de amor.
É nesse espaço de autolimitação, diminuição que nós podemos fazer uso da liberdade, entrar em diálogo com Deus. E é nessa liberdade que podemos entender as grandes tragédias da humanidade, as guerras, os genocídios que Deus permite porque, por sua decisão, não é mais perfeitamente onipotente. É incrível, mas o Deus dos judeus e dos cristãos é um Deus enfraquecido de amor.
Dois pensadores e teólogos contemporâneos, André Neher e Hans Jonas, conduzem a essa verdade a partir da reflexão bíblica e da cabala judaica. Aceitam o Tzimtzum – contração – termo hebraico que a cabala usa para designar essa autolimitação divina para possibilitar a criação.
Bento XVI, seguindo a tradição bíblica, expõe o amor erótico de Deus pelo ser humano, o que é possível somente com a diminuição de Deus: “O amor apaixonado de Deus pelo seu povo — pelo homem — é ao mesmo tempo um amor que perdoa. E é tão grande, que chega a virar Deus contra Si próprio, o seu amor contra a sua justiça. Nisto, o cristão vê já esboçar-se veladamente o mistério da Cruz: Deus ama tanto o homem que, tendo-se feito Ele próprio homem, segue-o até à morte e, deste modo, reconcilia justiça e amor” (Deus caritas est, 10). Criação e redenção só existem como fruto do rebaixamento de Deus, cuja última “contração” é encarnar-se em Jesus de Nazaré. Deus é totalmente transcendente, está acima de tudo, e é totalmente imanente, está em tudo. Somente o amor é capaz desse milagre, aceitável apenas por quem sabe o que é amar.
Por amor e com amor “no princípio Deus criou o céu e a terra”, sem medo de competição das criaturas, mas para entrar em diálogo com elas.
Pe. José Artulino Besen é historiador eclesiástico, professor de história da Igreja no Instituto Teológico de Santa Catarina - ITESC, pároco do bairro Procasa do município de São João - SC e autor do blog http://pebesen.wordpress.com/.
Nenhum comentário:
Postar um comentário