pelo Arcipreste Alexis Peña-Alfaro
Vigário para o Brasil da Diocese Ortodoxa Sérvia da América Latina
Extraído do livro Cristo, o Amigo do Homem
Um dos problemas da existência do demônio, na doutrina cristã, relaciona-se menos aos aspectos teóricos do que a questão prática. Em outras palavras, o fundamental é conhecer como o mal interfere na vida das pessoas. Por outro lado, sabemos que historicamente no Ocidente a figura do demônio foi bastante utilizada para ameaçar e amedrontar os fiéis com o fogo eterno, ou mesmo, com a as penas de sofrimento, culpa e tormento eternos, uma teologia do medo a Deus foi desenvolvida.
Embora, esta teologia do medo fosse amplamente praticada na Idade Média no Ocidente, de certa maneira chegou até nossos dias sob formas camufladas; na atualidade aparecem variações em torno do tema do demônio, um bom exemplo disto é da teologia da prosperidade que atribui ao demônio todos os infortúnios humanos: doenças, pobreza, tribulações, numa lógica maniqueísta que obriga ao fiel a escolher entre Deus ou o diabo.
Assim, comercializam as curas, os exorcismos, a prosperidade, tornando o demônio um grande parceiro comercial com o qual construíram seus impérios financeiros, midiáticos e até políticos, e graças ao medo do demônio prosperam e se tornam príncipes deste mundo seduzidos pelo tentador o que foi proposto ao próprio Cristo. (Mt 4: 8-10)
Mas, o mais grave ainda não é isso, o problema teológico e doutrinal que se coloca neste tema é o uso da ação demoníaca como álibi para fugir da responsabilidade pessoal das escolhas da vontade do sujeito. Na medida em que a “culpa” dos erros e dos pecados recai sobre “outro”, o cristão corre o risco de se eximir de assumir a responsabilidade das escolhas feitas.
Esta é sem dúvida, a questão mais relevante da discussão do papel do demônio na vida humana. Saber qual é o alcance da responsabilidade humana, do uso da inteligência e a liberdade dadas ao homem por Deus.
Em contra partida, a Filantropia de Deus nos deu os Santos Anjos da guarda para auxiliar e orientar os homens na liberdade de escolha para se voltar para Deus. Aqui temos um fragmento de uma oração dedicada aos anjos, verdadeiros amigos do homem, preservando a vontade de escolha do homem:
“Meu Salvador, não permitas que a minha alma – que Tu redimiste com o Teu precioso sangue – venha a perecer, mas, suplico-te, pelas orações do meu anjo-da-guarda a quem Tu me confiaste para cuidar-me e guiar-me, livra-me dos perigos e das armadilhas do maligno”.
A esse respeito, S. Máximo nos deixou entre seus escritos: “Interpretação do Pai Nosso” onde define claramente sua compreensão sobre o papel do demônio na vida humana. Neste trabalho ele o define como a causa do mal. Por isto interpreta a última palavra grega da oração do Pai Nosso como uma referência genérica ao mal, todavia, como uma referência explícita à sua causa, o maligno. Assim traduz: “E não nos deixes cair em tentação, mas livra-nos do maligno”.
S. Máximo o Confessor comenta ainda nesta obra cada frase da oração que Jesus ensinou aos Seus Discípulos. Este trabalho parece ter sido escrito no período da sua estadia no norte da África entre 628-630. A importância deste escrito reside em demonstrar que esta oração é um guia no caminho da divinização do homem, uma verdadeira mistagogia, quer dizer, uma iniciação aos mistérios que Deus propõe ao homem.
O problema do mal na teologia não pode ser ignorado nem deixado de lado, pois a interpretação do problema do mal está vinculada a uma correta interpretação do dogma e a espiritualidade cristã.
Negligenciar o problema do mal tem custado bastante caro ao homem contemporâneo, quem sob o pretexto da racionalidade, relegou a figura do maligno ao esquecimento, o que segundo alguns, nisto reside a sua astúcia, a de convencer a todos que sua existência não passa de uma fantasia; por acaso o mal, enquanto valor não domina a sociedade atual?
O problema do mal é crucial para as sociedades atuais, sobretudo urbanas, pelo grau de violência, destruição e desagregação que apresentam e apesar das conquistas científicas e materiais das quais o homem moderno tanto se orgulha. O problema do mal foi excluído da discussão cientifica, filosófica, moral e religiosa nos últimos dois séculos na cultura moderna.
O filósofo alemão Friedrich Nietzsche, chamado o profeta do nihilismo, aquele que anunciou a “morte de Deus” no séc. XIX, em plena euforia do triunfo da ciência positivista, constatou que os valores supremos como o Bem, a Verdade e a Beleza estavam esquecidos.
A sociedade contemporânea é marcada pelo nihilismo anunciado por Nietzsche quem através da frase “Deus está morto!” mostrou seu caráter anti-religioso e a perda daqueles valores supremos que orientavam as civilizações anteriores ao longo da história humana.
Somente na modernidade, encontramos uma cultura que se pretende atéia. Pela recusa clara e direta de Deus, constitui esta sociedade, uma anomalia histórica, pois sua visão de mundo é fragmentada, precária e provisória. Em conseqüência, perdeu toda referência de valor permanente, universal e transcendente.
O resultado é grave, pois, nenhuma civilização subsiste sem valores verdadeiros e permanentes. O nihilismo é definido pela perda do sentido e do significado da vida. Os ideais que davam coesão à sociedade tornaram-se atomizados e individuais. O sujeito contemporâneo é tentado a concluir que a vida não tem sentido e que para o corpo só resta a morte.
O quadro da sociedade contemporânea é um deserto vazio; materialismo, hedonismo, perda da dimensão da beleza, individualismo, violência como solução de problemas, ideologismo e esquecimento do amor e do ser. São alguns dos graves problemas, e as doenças do homem contemporâneo. (Reale, 1995)
Em contraste, S. Máximo nos ensina que a oração do Pai Nosso é um caminho que leva o homem até Deus, contemplando a SS. Trindade:
“A oração [do Pai Nosso] manifesta nestas palavras de como aquele que não perdoa totalmente aos que o ofendem e não apresenta a Deus um coração purificado da tristeza, iluminado pela luz da reconciliação com seu próximo, perderá a graça dos bens pelos que ora. E também, segundo um justo juízo, será entregue ao “Maligno” para que aprenda, assim, purificar-se das culpas, eliminando disputas com o próximo.
Aqui se chama “tentação” à lei do pecado, que não tinha o primeiro homem quando fora criado. É chamado “Maligno” o diabo que infundiu esta lei na natureza dos homens e por meio do engano persuadiu ao homem a transferir o desejo da sua alma, das coisas lícitas a aquelas proibidas e se voltar para a transgressão do mandamento divino, cujo fruto foi à perda da incorruptibilidade dada pela graça.
Também chama de “tentação” a disposição voluntária da alma para as paixões da carne; e é chamado de “Maligno” o modo da realização em ato da disposição passional. De nenhuma destas, livra o justo juiz a quem não tenha perdoado as ofensas dos que o ofendem, ainda que peça em vão mediante a oração; mas que, pelo contrário, permite que tal homem seja manchado pela lei do pecado e deixará que seja dominado pelo Maligno aquele cuja vontade é dura e rígida, porque preferiu as paixões da desonra, semeadas pelo diabo, à natureza criada por Deus.
Aquele que voluntariamente está inclinado para as paixões humanas, Deus não o impede de realizá-las de fato; não o livra da realização em ato da inclinação para as paixões (...). Porque Deus não permite que entre em tentação e não o abandona à escravidão do Maligno por este único motivo: porque está disposto a perdoar as ofensas ao próximo. Por isso nós, para resumir sucintamente o significado do que temos afirmado, se quisermos ser livrados do Maligno e não cair em tentação, que acreditemos em Deus e perdoemos as ofensas de quem nos ofendeu. (...)
Pois disse: “Se não perdoares aos homens os seus pecados, tampouco vosso Pai celeste vos perdoará.” (Mt 6: 15) para que não recebamos somente o perdão das culpas, mas que também vençamos a lei do pecado, sem que Deus permita que a experimentemos e esmaguemos a maligna serpente que gerou esta lei da qual pedimos ser liberados. Daí nos guiará logo ao supremo Ascenso das realidades divinas, ao Pai das luzes, fazendo-nos participes da divina natureza. (2 Pd. 1: 4) pela participação pela graça do Espírito Santo, pela qual receberemos o título de filhos de Deus, portando integramente em nós ao autor de toda esta graça e Filho do Pai por natureza, sem limitá-lo nem manchá-lo. Que a finalidade da nossa oração seja a contemplação deste mistério da divinização para que conheçamos o que realizou em nós a Kenose [o despojamento do Verbo] na carne do Filho Unigênito, e de onde fez subir pela potência da sua mão que ama o homem, a aqueles que haviam atingido o ponto mais baixo de todo o universo, onde nos tinha precipitado o peso do pecado.
Assim, amaremos mais a Quem sabiamente preparou esta salvação para nós. Mostremos mediante as nossas ações o cumprimento da oração [Pai Nosso] e proclamando manifestemos que Deus é verdadeiramente, Pai pela graça. Mostremos claramente, pelo contrário, que não temos por pai de nossa vida ao Maligno quem, mediante as paixões desonrosas, dedica-se a impor sempre tiranicamente seu domínio à natureza.
Que não nos aconteça de mudar a vida pela morte, porque cada um dos adversários [Cristo e o Diabo] distribui naturalmente aos que a eles estão unidos: um dispensa a vida eterna aqueles que o amam; o outro, pela sugestão das tentações voluntárias, a morte a quem dele se aproxima. Porque, segundo a S. Escritura, dupla é a forma das tentações: uma pelo prazer e a outra pela dor. Uma é livre e a outra não. Aquela gera o pecado e o ensinamento do Senhor prescreve-nos orar para não cair nela quando diz: “não nós deixes cair em tentação” (M.t 7: 13) e “Vigiai e orai para não cair em tentação” (Mt. 26: 41). A outra forma protege do pecado, castigando a disposição que ama o pecado com suprimentos involuntários de penas (...)
O Maligno usa perfidamente ambas as tentações, a voluntária e a involuntária. Semeando a tentação voluntária, excita a alma com os prazeres do corpo para afastar o seu desejo, com estas maquinações do amor divino; e com engano tenta obter a tentação involuntária porque quer destruir a natureza com dor, para forçar a alma abatida pela fraqueza dos sofrimentos, a voltar seus pensamentos à calúnia contra o Criador. Pelo contrário, conhecendo bem os pensamentos do Maligno, oremos para afastar a tentação voluntária, para que não afastemos o desejo da caridade divina.
“E que todos que invocamos o Nome de Nosso Senhor Jesus Cristo sejamos resgatados dos prazeres presentes do Maligno, libertos das dores futuras pela participação na substância verdadeira dos bens futuros”. (S. Máximo: Interpretación del Padre Nuestro, pg. 233-238).
Fonte: Aurora Ortodoxia: A Doutrina da existência do demônio e a responsabi...: Arc. Alexis, Bispo Mitrofano
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