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Assim, no espírito das Bem-aventuranças, se esforcem para purificar o coração de toda inclinação e avidez de posse e de dominação, como peregrinos e forasteiros a caminho da casa do Pai. - Regra OFS nº 11

segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

A cozinha franciscana


Guilherme Valle

A caminho da barriga a comida passa pela boca, portanto pela cabeça. No sentido inverso da copa o alimento é originário da cozinha. Vale a pena trabalhar com este duplo esquema para a elaboração de uma prática fraterna inspirada por São Francisco de Assis.



No paladar são acionados os códigos gustativos, visual e de odores. Na pança é despertado o código digestivo. Pelas propriedades do olhar o prato é de fácil absorção intelectual. Através do gosto, do cheiro e finalmente do estômago passa-se de um trabalho mental para outro sensível e não apenas contemplativo. Pegando carona neste trânsito entre o belo e o orgânico vale ressaltar que sob os olhos classificamos aromas, separamos um por um e apreciamos individualmente cada um. Mas na digestão cores e sabores diversos tornam-se um único prazer satisfatório. Retoma-se no calor da saciedade a vida reunificada após ter sido criteriosamente dividida nas várias formas para atender aos anseios do intelecto. Ser ou não homem integral ganha aí simbolicamente um sentido de primordial. E, partindo da crença ecológica franciscana, uma cadeia alimentar separada por peixes, aves, mamíferos em geral e seres humanos tem a sua hierarquia abolida dando lugar a mais absoluta igualdade entre todas as espécies unidas pela forma unificada da refeição que satisfaz a fome.


Tomando a metáfora de uma casa separada por seus cômodos, para tratar de rituais, tem-se a comida servida na mesa da copa e que foi produzida na cozinha. Do mesmo fogão ou forno, seguindo por esta dinâmica que leva ao movimento no interior da residência compartimentada, chega-se ao alimento individualizado em travessas, tigelas e vasilhas disposto sob os olhos dos convivas. Se há alguma hierarquia entre o arroz e o feijão ou entre a carne e a salada certo é que foram todos confeccionados a partir da mesma água ou do mesmo sal. Foram pelas mãos de uma mesma cozinheira. Adquiridos no mercado através do mesmo dinheiro. Passa-se, em um tempo cronológico contado regressivamente (de trás pra frente), da salada priorizada algumas vezes (ao invés da carne) a uma igualdade ao redor do fogo (na cozinha) e bem próximo a ele. Pois bem, todos os alimentos são iguais quando queimam perto das chamas e também todos os homens quando formam um círculo em torno do calor. A fraternidade franciscana pode, em algum momento, ser submetida a uma divisão social que fica bem clara pelas posições ocupadas individualmente em torno de uma mesa retangular. Mas este ordenamento não resiste ao ambiente aconchegante da cozinha onde prevalece a irmandade que circunda o fogo.


As duas dinâmicas propostas terminam e têm o seu princípio desenvolvido a partir de uma irmandade franciscana. No trajeto entre a boca e a barriga os diferentes alimentos vão aos poucos se afastando da biologia que os posiciona na cadeia alimentar obedecendo a um ordenamento que leva do considerado mais importante para chegar ao menos. Passam todos a uma mesma condição única que faz a fome saciada. Da mesma forma, em um tempo retrospectivo, os pratos e os homens vão abandonando a sua apresentação exclusiva para tornarem-se todos, cada vez mais no ritual entre a copa e a cozinha, uma única e inclusiva comunidade em torno do fogão. Ninguém fica de fora. Ninguém é melhor do que o outro. Todos estão convidados para formarem uma fraternidade.

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