Guilherme Valle, ofs - sociólogo e antropólogo
O Papa abriu mão do latim para o canto do Evangelho. A língua do Império Romano. Dos opressores que submeteram a periferia do mundo. Optou pelos pobres e humildes. Mas a modernidade não aceita que houve uma inversão. Um caso: um teólogo, na TV, não vê simbolismo na troca da cor dos sapatos do Papa. Era vermelho e agora é preto ou marrom. Para ele, o Papa Francisco não é tão avesso ao luxo que sempre marcou a Santíssima corte. Mas a sua explicação, que procura descartar o pensamento mágico, é a de um Papa jesuíta que, aí sim, teria optado por ser prático. Mais do que ser pobre.
A modernidade vai, no seu curso pelos séculos, retirando, cada vez mais com um cuidado bastante científico, o encanto que há no mundo. A magia, embora não desapareça completamente, vai dando lugar a uma lógica que procura dar explicações baseadas em verificações da ciência moderna. Os rituais, no contexto dos quais dão-se as inversões dos valores de uma sociedade, não acompanham a alta velocidade das informações trocadas nas fronteiras do saber. O novo Papa se voltou para os pobres. A prova está no fato da supressão do latim. Mas o católico moderno, o tempo inteiro, exige uma compreensão menos “primitiva” para os dados. Não se satisfaz com a magia e o encantamento. Quer muito mais. O porta-voz do Vaticano, Federico Lombardi, referindo-se à missa de entronização, disse que modificações, como a do latim, “não mudarão substancialmente a liturgia, pois haverá várias partes da missa inaugural em latim”. Uma única mudança, para o teólogo, não é suficiente. Mesmo que, aos olhos da tradição católica, seja a que realmente importa. Não há, para ele, uma inversão, mas sim pequenas mudanças. Uma tendência de ficar tudo como está.
O caso dos sapatos ilustra bem uma crença que não é partilhada por outro teólogo, que aparece na TV. É bem verdade que nem todos os simbolismos merecem destaque. Mas ficou parecendo um descarte imediato que se negou a dar explicações. E um pouco de antropologia seria bem interessante. Ele nem sequer permitiu um pensamento mágico. Assim como, ao menos neste instante, mostrou-se descrente de Francisco. Pois optou por uma lógica que, simultaneamente, não deixa transparecer a magia e lança um olhar sobre as coisas a partir da sua utilidade. Unicamente. Realmente não tem a menor utilidade a cor dos sapatos do Papa. Mas não tratamos, aqui, de temas como economia ou tecnologia. E sim de religião. O catolicismo deve ser uma religião da pobreza, segundo Francisco. Um Papa que “até gostaria” do luxo e da praticidade, conforme o teólogo, dá a entender que, publicamente, é pobre e, privadamente, é rico. Mas Sua Santidade não é um fariseu. Seu voto de pobreza é sincero.
A antropologia ajuda muito a observação, e a ação mesmo, em um contexto em que a pobreza está encantada, como no movimento franciscano. Onde a língua usada não é o latim, mas a da periferia. Onde a pobreza é, no mínimo, tão relevante quanto a praticidade. Onde há modernidade, mas onde os rituais preservados levam às inversões.
Fonte: G1 |
Parabéns!
ResponderExcluirTexto muito bom!