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Assim, no espírito das Bem-aventuranças, se esforcem para purificar o coração de toda inclinação e avidez de posse e de dominação, como peregrinos e forasteiros a caminho da casa do Pai. - Regra OFS nº 11

quinta-feira, 24 de junho de 2010

Maria através de um olhar franciscano

por Fred Félix, ofs




Maria ocupa um lugar privilegiado dentro do cristianismo. Tendo sido a escolhida a experimentar em si todos os aspectos da nova aliança em Cristo. Também no franciscanismo ela possui uma posição ímpar onde recebe grande veneração (hyperdoulía). Francisco traz a sua doutrina evangélica a Mãe do Cristo como a figura exemplar a ser seguida, referência primeira da prática concreta e plena da mensagem salvífica de seu Filho. Para o Poverello de Assis, além do Cristo, Maria é a própria dama pobreza a qual seus filhos devem esposar em espírito e obras – “Via o Filho da pobre Senhora em todos os pobres, pois o levava despojado em seu coração como ela o tinha carregado em seus braços” (2Cel 83).

Além disso, Francisco crê que o anúncio do Evangelho que definiu a tônica de sua espiritualidade não por acaso foi transmitido na pequena ermida de Santa Maria dos Anjos, denominada Porciúncula (pequena porção de terra). Para ele tal fato comprova a participação de Maria na formação daquele pequeno grupo. A isso ele anuncia Santa Maria como advogada da Ordem Seráfica. Anos avante, Francisco consegue junto à Santa Sé a indulgência plenária a todos aqueles que fossem até a pequena igreja. Ninguém que chegasse ao “seio” de Santa Maria poderia sair sem o consolo materno e o perdão dos pecados.

 Um último aspecto perpassa os dois primeiros e encerra na figura de Maria todo o cumprimento da proposta seráfica de Francisco. A espiritualidade franciscana é Escola da Encarnação. A plenitude espiritual é alcançada através de um processo de conversão (μετάνοια - metanóia)  que tem por função, na prática cotidiana dos preceitos cristãos, desfazer-se do ego pessoal e imbuir-se da imagem do Cristo, de modo em que, no ápice do processo, possa-se exclamar do mesmo modo como Paulo de Tarso: “Já estou crucificado com Cristo; e vivo, não mais eu, mas Cristo vive em mim; e a vida que agora vivo na carne, vivo-a na fé do Filho de Deus, o qual me amou, e se entregou a si mesmo por mim” (Gl 2,20).

Para explicar a forma como alcançar esta encarnação, Francisco descreve a imagem de Maria em sua “Carta aos Fiéis”. Esta, que foi a primeira regra (junto ao Memoriali Propositi) dos Irmãos e Irmãs da Penitência, hoje é o prólogo da regra renovada da Ordem Franciscana Secular. Na “Carta aos fiéis”, Francisco começa por apresentar a bem-aventurança de todos aqueles que seguem uma vida de penitência:

Todos os que amam o Senhor com todo o coração, com toda a alma e a mente, com toda a força (Mc 22,39) e amam seus próximos como a si mesmos (Mt 22,39), e odeiam seus corpos com os vícios e pecados, e recebem o corpo e o sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo, e fazem frutos dignos de penitência:
Oh! como são bem-aventurados e benditos, eles e elas, enquanto fazem essas coisas e nelas perseveram, porque descansará sobre eles o espírito do Senhor (Is 11, 2) e neles fará sua casa e morada ( Jo 14, 23) e são filhos do Pai celeste (cfr. Mt 5,45), cujas obras fazem, e são esposos, irmãos e mães de nosso Senhor Jesus Cristo (cfr. Mt. 12, 50). 

A primeira imagem apresentada é a recepção do Espírito Santo pelo fiel que ama de todo coração e com todas as suas forças a Deus e a seu próximo. Francisco mostra como condição necessária para a infusão do Paráclito o seguimento do Evangelho de Cristo e a produção de dignos frutos de penitência, a saber: a conversão realizada a cada dia, colocando-se na humilde posição de criatura à procura da graça divina do Pai que, em sua misericórdia, acolhe seus filhos e filhas.

Ora, esta posição de humildade que faz o homem reconhecer-se débil criatura à dependência de Deus é primeiro passo à recuperação da graça original. Graça esta que Maria tinha como condição pessoal desde seu nascimento, sendo depois mundialmente proclama sua conceição imaculada. Contudo, o que para Maria foi ponto de partida para a recepção de seu filho e posterior entrega à humanidade, para nós é ponto de chegada da maratona que percorremos desde que recebemos dos braços de Maria este mesmo Filho e Irmão.

Maria foi aquela que, em sua vida, reconheceu Deus em cada uma de suas dimensões. Foi agraciada por participar intimamente do mistério da Santíssima Trindade. E Francisco nos apresenta o modo de seguir estes passos da Santa Senhora. Passemos a um detalhado estudo desta via mariana:

Ser Filho de Deus

Oh! como é glorioso, santo e grande ter nos céus um Pai!”, exclama Francisco. O reconhecimento de nossa filiação divina é primeiro passo ao se trilhar um caminho em direção à plenitude. De Deus, nosso Criador, viemos e para Ele devemos voltar. Nele está nossa essência, nossa centelha de vida (e divina). Através de ações e atitudes condizentes com o Evangelho - a mensagem enviada pelo Pai na pessoa de Cristo - reconhecemos nossa filiação e nos colocamos na posição de filhos que esperam de seu progenitor a condução e a proteção no caminho.

Esta disposição é concretizada através da humildade. Sendo esta vista não como subserviência, contudo em seu real sentido: reconhecer-se que é simples criatura em meio a outras iguais criaturas e um único é o Criador. A palavra humildade vem de humus, terra. Ser humildade é enxergar que se faz parte de um todo, a Criação, sendo ela objeto único de materialidade de um amor tão grande que não conseguiria se conter. Deus explode de amor e cria a vida! Esta, a vida, é um único organismo do qual fazemos parte. Por isso, reconhecer-se partícipe deste grande mistério e considerar quão grande é o nosso Criador e Pai.

Ser esposo do Espírito

Somos esposos, quando pelo Espírito Santo une-se a alma fiel a nosso Senhor Jesus Cristo”. Maria foi a perfeita esposa do Espírito. Ela se uniu a Deus em perfeita comunhão espiritual. Esteve aberta a toda a sua ação e se entregou em plena confiança ao projeto divino para recuperação do ser humano.

  
            Todos os grandes santos e santas experimentaram o desposar o Cristo. Santa Clara mesmo afirma: “(...) rejeitastes tudo isso e preferistes a santíssima pobreza e as privações corporais, com toda a alma e com todo o afeto do coração, tomando um esposo da mais nobre estirpe, o Senhor Jesus Cristo, que guardará vossa virgindade sempre imaculada e intacta. Amando-o, sois casta; tocando-o, tornar-vos-eis mais limpa; acolhendo-o, sois virgem".


Estar aberto para a construção de uma intimidade com Deus. Esta é a percepção desta etapa. Intimidade é o que se constrói com a presença constante e com o cuidado. Ser esposo é estar aberto para um diálogo com o Criador. Diálogo este que só é possível de ser realizado no silêncio do próprio coração.

Ser irmão do Cristo

Somos seus irmãos quando fazemos a vontade do Pai que está nos céus”. Dentro da fraternidade conhecemos o que realmente significa ser irmão. É ultrapassar os meros laços corporais, para reconhecer os laços do espírito. Francisco e Clara vivenciaram isto. Ambos compreenderam no olhar do outro o mesmo amor à mesma coisa e isto formava entre os dois um laço tão profundo que é difícil das pessoas compreenderem.

            Realizando o devido cumprimento do Santo Evangelho vivenciamos em nós a própria substancia da mensagem do Cristo. O Espírito de Deus vem e habita no coração do homem evangélico. E, desta maneira, afirma o Senhor “Todo aquele que faz a vontade de meu Pai que está nos céus, esse é meu irmão, minha irmã e minha mãe” (Mt 12, 50).

Ser Mãe do Cristo

Mães, quando o levamos em nosso coração e em nosso corpo, pelo amor divino e a consciência pura e sincera; e o damos à luz pela santa operação, que deve iluminar os outros com o exemplo”. O último estágio da Carta aos Fiéis escrita por Francisco de Assis é o de ser mãe do Cristo. Isto é feito través encarnação em si da mensagem do próprio Senhor e posterior exercício.

            O amor divino é o veículo para a verdadeira encarnação da mensagem divina. Este amor é alcançado com as práticas de penitência apontadas pela tradição franciscana: oração, esmola e jejum. Com o desejo sincero da construção deste amor, sabendo-se filha(o) do Criador, esposa(o) do Senhor e irmã(o) do Redentor, chega-se ao estágio de Mãe, no qual o Evangelho está completamente acolhido no coração do homem e, desta forma, todas as suas ações e palavras serão iluminadas, repletas de Divina Luz. A cada momento o próprio Deus nascerá através da atitude daqueles que se tornaram de tão forma abertos que dentro deles não exista mais a si mesmo, contudo se verá neles o reflexo do Cristo Senhor.

Maria viveu cada etapa desta em sua vida. Ao olharmos para ela não enxergamos nada além da perfeita encarnação de seu próprio filho. E seu único ensinamento registrado nos Evangelhos trás a síntese de todo este íter prescrito por Francisco: “Fazei tudo o que Ele vos ordenar!”.

            Que com o auxílio divino e a interseção mediadora da Nobre Senhora consigamos alcançar a plenitude de nossa ressurreição junto de seu filho e irmão nosso, Jesus Cristo Nosso Senhor. Amém.

Oh! como é glorioso, santo e grande ter nos céus um Pai! 
Oh! como é santo ter tal esposo: paráclito, belo e admirável! 
Oh! como é santo e dileto ter tal irmão e filho, agradável, humilde, pacífico, doce, amável e sobre todas as coisas desejável: Nosso Senhor Jesus Cristo!
                                                                                              Francisco de Assis

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